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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Resenha do Filme: Germinal

Resenha do Filme: Germinal

Discente: Alan Cardoso Ferreira Santos

 

O filme O Germinal é uma obra baseada no livro de mesmo nome escrito pelo francês Émile Zola. O longa-metragem é ambientado em meados do século XIX, e tem a proposta de abordar da maneira mais realista possível a conjuntura socioeconômica da França em um momento de grande relevância histórica, a Revolução Industrial, isto é, o processo de transição das formas de trabalho que, grosso modo possibilitou a sobreposição das ferramentas manuais por máquinas, do modo de produção artesanal e braçal, pelo trabalho nas fábricas.

 A peça cinematográfica foi dirigida pelo francês Claude Berri, e oportuniza, entre outras coisas, uma preciosa ocasião para observação e teste do funcionamento do método de análise social desenvolvido Por Carl Marx o Materialismo Histórico Dialético, uma vez que a realidade de trabalho e de vida degradantes dos personagens impacta e interfere em todas as outras dimensões de suas “existências”.

 A projeção cujo conteúdo transcorre na maior parte do tempo em uma mina de carvão, a mina Voreux na cidade de Montsou converge, em muitos aspectos, com a bibliografia estudada no componente (Historiografia I) em pontos importantes como os presentes na obra de Eric Hobsbawm onde o autor em “A Era das Revoluções” aborda a Revolução Industrial, se referindo ao caso Inglês, afirmando:

Poucos refinamentos intelectuais foram necessários para se fazer a Revolução Industrial. Suas invenções técnicas foram bastante modestas, e sob hipótese alguma estavam além dos limites de artesãos que trabalhavam em suas oficinas ou das capacidades construtivas de carpinteiros, moleiros e serralheiros. (Pág: 28).

 O ambiente criado pela equipe do filme o Germinal transmite de maneira crível ao espectador o sentimento de penúria “vivido” pelos personagens do núcleo proletarizado, os apresentando não como produtores autônomos, que controlam diretamente a confecção de mercadorias e produtos, mas sim como pessoas que possuem apenas sua envergadura muscular, sua mão de obra, reduzidas a simples operadores de ferramentas, caracterizando de maneira clara o modo de produção capitalista.

 A narrativa faz um recorte da extração do carvão na França que no início do século XIX, segundo Hobsbawm, era a principal fonte de energia industrial além de ser um importante combustível doméstico, para ele, portanto, conforme trecho acima, a mineração do carvão, em seu início, quase não sofreu uma importante transformação tecnológica, o que corrobora com o visto no filme, uma vez que é possível observar, no decorrer da trama a predominância do trabalho essencialmente braçal e a utilização de técnicas e ferramentas ainda rudimentares. Essa condição, no entanto, não impedia a alta produção, extraia-se uma quantidade imensa desse minério, para se ter ideia “segundo Hobsbawm” em 1800 a França foi o segundo maio produtor mundial de carvão, produzindo, menos de um milhão de toneladas, ficando atrás apenas da Grã-Bretanha, que foi o maior produtor (de carvão) no período.

 A trama lança luz sobre as condições de vida de um grupo do proletariado francês que exerciam em comum o pesado ofício da extração do carvão, atividade que além de expor os trabalhadores a ambientes insalubres, quase insuportáveis era caracterizada pela baixa remuneração impondo a quem ali trabalhava uma existência miserável.

 Étienne Lantier, é apresentado como protagonista, em torno dele (mas, não só dele) construiu-se as narrativas que nos permite perceber as profundas contradições estabelecidas pelo meio. No início da trama o encontro entre Étienne Lantier com outro personagem o “Boa Morte” tem forte apelo simbólico, “Boa Morte” é o apelido do patriarca da família cuja história transcorrerá no entorno, a única fonte de subsistência dessa família, por gerações foi o trabalho na mina. A conversa entre “Étienne Lantier” e “Boa Morte”, portanto, sem dúvidas possui um forte valor metafórico. Ali, “cara a cara” estão dois homens em momentos diferentes de suas existências o Étienne Lantier, representa a figura do homem que se desloca de sua terra em busca de uma vida melhor, carregando entre seus utensílios pessoais boa quantidade de esperança, do outro lado está o “Boa Morte”, homem que dedicara 50 de seus 58 anos ao trabalho naquele lugar, portanto, para ele, não há outra realidade senão a apresentada por aquele lugar, aparentando muito mais idade do que realmente possuía, “Boa Morte” claramente transmite, ao contrário do Étienne Lantier a desesperança, doente, “Boa Morte”, simboliza fidedignamente o que Friedrich Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, capítulo “O proletariado mineirodescreve se referindo a quem exercia esta mesma atividade (extrator de carvão) na Inglaterra:

(...) Homens que começam a trabalhar precocemente nas minas não atingem o desenvolvimento físico das mulheres que trabalham na superfície; muitos morrem ainda jovens, vítimas de tuberculose galopante, e outros na meia-idade, em razão da tuberculose lenta; é comum o envelhecimento precoce, que torna os homens ineptos para o trabalho entre 35 e 45 anos. (Pág: 276).

 Étienne Lantier, que procurava trabalho teve Boa Morte, com sua tosse insistente e aparentando uma existência vazia de sentido, como cartão de visitas, iniciando ali a construir um posicionamento que o faria, mais á frente, lutar para tentar ter, no futuro, um destino diferente do seu interlocutor. As condições sub-humanas apresentadas no filme indicavam para um eminente ato de resistência dos trabalhadores e é esse processo que ocupa praticamente toda primeira parte do filme.

 Boa morte era pai de Meheu, este casado com Maheude, tinham sete filhos e todos moravam em uma pequena casa sem privacidade dividindo inclusive a água do banho. Meheu era um operário antigo que trabalhava na mina junto com alguns filhos, inclusive sua filha mais velha Catherine”, Meheu ao saber que uma de suas colegas de trabalho “Fleurance” havia morrido, pede para que a mesma seja substituída por Étienne Lantier que anteriormente havia percorrido a mina em busca de trabalho, mas não havia encontrado vaga. A presença de Catherinetorna-se um alento para Lantier e a recíproca parece ser verdadeira, ambos se olham e se admiram e certamente isso ajuda Lantier a adapta-se mais rapidamente ao trabalho na Voreux.

 No cenário perverso apresentado pelo filme, como já foi citado, todos da família precisam trabalhar, homens mulheres e crianças, todavia um dos filhos de Meheu o Maxime, tem apenas cinco meses e em função de ter que alimentar e cuidar da criança Maheude,  a esposa de Meheu não trabalha na mina, Maheude costumava pedir ajuda financeira a burguesia para colaborar na despesa de casa. A saída de um membro da família do núcleo familiar impactava fortemente no orçamento doméstico, foi o que ocorreu quando um dos filhos de Meheu, o Zacharie, casou, tentando resolver o problema da queda no orçamento Maheude convida Lantier para morar com eles, mais tarde, porém, a família seria desfalcada pela saída de outro membro, Catherine, ela seria praticamente forçada a morar com Chaval, também trabalhador da mina, Chaval era um homem embrutecido e às vezes violento.

 As duras condições de trabalho já citadas e o contato com novas correntes de pensamento político como o Marxismo e o Anarquismo (atravéz do personagem Souvarine) aumenta a inquietação de Lantier. É nesse contexto que ele propõe uma organização mais pragmática, como, entre outras coisas a criação de um fundo financeiro, com o objetivo de amparar a categoria no caso da deflagração de uma greve.

 A ocorrência de um acidente que feriu um dos filhos de Meheu em função das precárias condições de escoramento desencadeou uma reformulação no calculo salarial dos trabalhadores, a mudança, apesar não ser explicitamente contra os trabalhadores, os prejudica na prática. A “pseuda” preocupação com novos acidentes ocasionados por falhas no escoramento gerou novos regulamentos impondo aos trabalhadores uma rotina de escoramento à parte, para isso diminuiu-se em dois cêntimos o valor da vagoneta cheia de carvão.

As medidas tomadas pelo patronato, que na prática reduziu salários tensionaram de tal maneira a situação entre as classes que a deflagração de uma greve se tornou inevitável. Étienne Lantier tomou a frente do movimento. O movimento se espalhou e em pouco tempo outras minas da região também deflagraram greve. Eles acreditavam que conseguiriam negociar com os patrões persuadindo-os a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores, no entanto logo perceberam as dificuldades, quase intransponíveis de negociação com os patrões o que arrastaria a paralização por meses, a situação citada só aumentou a miséria dos trabalhadores e consequentemente as insatisfações, até mesmo dentro do próprio grupo grevista, que não demorou a voltar às críticas para Lantier.

A situação se agravaria ainda mais quando o patronato decidiu contratar operários belgas para substituir os grevistas, para garantir essa iniciativa convocaram um pelotão miliciano que posicionou seu regimento no entorno da mina Voreux, a partir daí a trama ganha dramaticidade, pois gerou ainda mais revolta nos trabalhadores e motivou o enfrentamento entre trabalhadores e milicianos, confronto teve, entre outras consequências trágicas o assassinato de Meheu.

O abalo emocional ocorrido após morte de Meheu acometeu a todos desestabilizando o movimento, a filha de Meheu “Catherine”, que a essa altura já havia sido abandonada por Chaval e retornado pra casa de sua mãe, e o agora desacreditado e altamente questionado pelos próprios trabalhadores Lantier decidem voltar a trabalhar na mina, atitude sobre a qual Maheude se posiciona fortemente contrária, ameaçando quem optasse pelo retorno ao trabalho.

Mesmo enfrentando os protestos de Maheude, Catherine e Lantier, decidiram voltar ao trabalho, accontece que Souvarine, personagem anarquista do filme que desde o início se mostra cético quanto aos resultados positivos de uma negociação sem violência, preparou um atentado a mina Voreux, após a sabotagem a mina foi inundada e diversas galerias da ficaram submersas muitos funcionários morrem outros ficam presos, casos de Catherine, Lantier e Chaval. Encurralados e sem perspectivas de resgate Chaval tenta abusar de Catherineé atacado por Lantier que tira sua vida atirando contra ele uma grande pedra.

A película, portanto demonstra uma clara preocupação em fazer uma abordagem ampla que inclua não só a dimensão material daqueles trabalhadores, mas também o impacto da mesma na vida dos personagens, um bom exemplo desse esforço é a cena protagonizada por Catherine, Lantier, presos, os dois discorrem sobre as diversas versões que a vida deles poderiam ter, inclusive a do sentimento despertado em ambos desde que se viram pela primeira vez, naquele lugar porém, não havia espaço para o romantismo, a penosa realidade moldava tudo ao seu gosto e assim todas as possibilidades de relação dos dois foram barradas  por uma realidade cruel e impeditiva.

 A narrativa, ao abordar o modo de vida daquele grupo de trabalhadores pelo viés do ambiente de trabalho e subsistência dos mesmos, nos permite observar a realidade social das mulheres proletarizadas, elas são claramente posicionadas em uma situação ainda pior do que as dos homens proletarizados, a entrada de Lantier na mina só foi possível em função do falecimento de uma mulher, Fleurance, o personagem não chega a aparecer no filme, e a causa de sua morte, apesar de ser atribuída por Meheu a excesso de bebida (Genebra), no entanto, e aqui cabe exercitar o método criado por Carlo Ginzburg Paradigma Indiciário, que trabalha rastreando sinais tal como um caçador, pode-se deduzir com alguma margem de segurança que Fleurance teve sua saúde prejudicada pelas péssimas condições em que realizava seu trabalho. Na dimensão afetiva a situação das mulheres são igualmente ruíns elas quase sempre são submetidas aos desejos dos homens em muitas ocasiões com uso da violência como ocorreu entre Catherine e Chaval

O personagem “Boa Morte” protagoniza mais uma cena de forte simbolismo, a jovem “Cécile” pertencente à burguesia visita a casa de Maheudea a fim de realizar uma ação caridosa doar sapatos e comida, nesse momento o velho “Boa Morte” parece reunir suas poucas forças para realizar uma ação violenta e representativa, ele se levanta e ataca Cécile a sufocando com as mãos até leva-la a óbito, uma das interpretações possíveis dessa cena é a de que ela representaria a luta de classes o onde a burguesia é esmagada a  partir  da  consciência  que  é  tomada  pela  classe operária.

No final do filme Lantier, já se despedindo dos funcionários da mina e recebendo olhares de reprovação de muitos encontra surpreso Maheude, ela que se posicionara radicalmente contra o retorno ao trabalho, agora é ela e a filha Jeanlin, quem sustentam a família, uma vez que seus outros filhos Leonore, Henri e Maxime ainda eram muito novos e Boa Morte havia perdido a pensão. Esse desalentador encontro mostra um Étienne Lantier desesperançado, em sua conversa demonstra frustação mas é consolado por Maheude que diz reconhecer que ele de nada teve culpa do desfecho do movimento grevista.

 Para o último ato a produção do filme preparou uma cena antológica, após chegar repleto de esperanças e logo após acreditar firmemente que a organização da classe trabalhadora, da qual ele era parte, junto com a luta traria como consequência a melhoria das condições de vida do trabalhador, Étienne Lantier caminha e parece deixar para trás muito da esperança que trouxera quando chegou, se distancia deixando para trás as lembranças de Catherine, cujo ultimo suspiro o deu em seus braços balbuciando que estava feliz. Mas, também levava, afinal nem tudo se perdeu algo ficou, aprendeu-se. Ali, foi lançada a semente e germinou, isto é brotou as primeiras lutas que doravante seriam constantes em um contexto de mudanças onde as relações burguesia proletariado davam, de maneira desigual e violenta, seus primeiros passos.


Alan Cardoso Ferreira Santos

Graduando em História (Licenciatura) UFBA

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